Adoramos Ler - O Feitiço de Aquila - Joan D Vinge.rtf

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JOAN D

 

 

JOAN D.VINGE

 

O FEITIÇO DE AQUILA

 

Tradução Luíza Ibañez

 

 

Nos muros de um castelo proibido, construído nos tempos do Império Romano, mas agora em franca decadência, desenrola-se uma insólita história de amor entre a bela Lady Isabeau e Etienne Navarre, Capitão da Guarda. Punidos por toda a eternidade a vagarem por lugares ermos, sempre juntos, mas no entanto sempre separados, eles lutam desesperadamente para se livrarem de um feitiço que lhes lançou o poderoso e maquiavélico Bispo de Aquila.

Enciumado por ter sido preterido pela moça, ele condena o casal a nunca se tocar. Durante o dia, Isabeau toma a forma de um falcão que retoma a própria personalidade ao pôr-do-sol. O rapaz, por sua vez, se torna um lobo que recupera â forma humana ao alvorecer de cada dia. De que maneira os dois amantes poderão livrar-se da influência do religioso? Talvez isso lhes signifique a morte.. .

Com base numa lenda do século XIII, Joan D. Vinge escreveu Ladyhawke (O Feitiço de Aquila), misturando aventura, história, ficção científica e suspense, numa narrativa fantástica que enriquece a coleção de best-sellers da autora.

 

 

Título original: Ladyhawke

 

Revisão tipográfica: Umberto Figueiredo Pinto e Henrique Tamapolsky.

 

1985

Todos os direitos desta tradução reservados à:

LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.

 

 

 

 

Para "Billy e Duff"

 

 

 

CAPITULO 1

Ao nascer do sol, o cavaleiro de negro esperava no alto da colina, muito acima da cidade, como já havia esperado lá no amanhecer ante­rior e no amanhecer anterior àquele. Ele ajeitou o corpo na sela, com frio e cansado, observando o céu clarear e a névoa acinzentada da manhã elevar-se do vale abaixo.

Quando a cerração desfez-se, ele avistou as torres de ameias do Castelo Aquila surgindo em perspectiva, pontilhadas de dourado, como um vislumbre do céu. Por um momento, aquela vista fez a saudade oprimir-lhe o peito. Foi apenas um momento. Ele sorriu desoladamente da própria incapacidade em deixar de crer que essa vigília algum dia te­ria fim ou lhe mostraria uma resposta.

Agora, abaixo dele o resto da antiga cidade emergia da neblina. Aquila havia sido uma cidade florescente desde os tempos romanos -ainda ostentava seu velho nome romano, que significava "Águia". Con­tudo, a Idade Média confinara suas casas apinhadas e as ruas estreitas, serpenteantes, dentro de soturnas muralhas de pedra, circundando-as como um fosso de água negra e lenta, alimentada por um rio subterrâ­neo.

Os campos fora dos portões da cidade também mostravam quase idêntica desolação. O outono chegara cedo esse ano, após um verão causticante, quase sem nenhuma chuva. O ano anterior não havia sido melhor. A esta altura, os campos já haviam sido despojados de todas as suas pobres colheitas, crestadas pela seca, que tinham conseguido sobrevi­ver. A colheita do ano presente mal daria para alimentar os moradores já famintos de Aquila durante o inverno, mesmo que seu Bispo não hou­vesse tornado a aumentar os impostos, a fim de manter cheios seus pró­prios cofres e armazéns. O espectro da fome assombrava as ruas lúgubres da cidade. Contudo, enquanto a Igreja Militante governasse, o povo pagava e passava fome.

Somente a catedral, situada no coração da cidade, ainda mantinha sua etérea beleza a plena luz do dia. Altas janelas de vitrais e incontáveis bandeirolas de seda transformavam suas paredes com santos enfileirados e os tetos abobadados em uma visão do paraíso - a mais aproximada do céu sobre a terra que jamais veriam os fiéis ali reunidos para a missa.

As faces esquálidas dos cidadãos de Aquila, iluminadas pelas velas, voltavam-se impassivelmente para o altar, todos conformados em dizer suas orações. A música do órgão inundava o espaço acima deles e fluía para as ruas, chegando até mesmo ao observador sobre a colina.

O Bispo de Aquila estava diante do altar enfeitado, uma figura se­veramente resplendente em suas vestes de brocado branco. Ele entoava o Credo da missa, em uma cantilena aguda e sem tonalidade, que mais era um aviso do que uma promessa de redenção. Os fiéis declamavam as obrigatórias respostas em latim, palavras sem sentido que haviam de­corado mecanicamente. Se alguns deles ousassem fitar o Bispo direta­mente, era com constrangimento que notavam o contraste entre a rique­za de seu vestuário e a doentia palidez de suas feições angulosas. Era um homem alto, já avançado na meia-idade, com o rosto mostrando os si­nais dos anos de vida auto-indulgente, e os olhos brilhantes, pálidos e implacáveis como gelo.

Ele se virou para os dois coroinhas que esperavam, de pé ao seu lado, segurando um cálice de ouro, incrustado de jóias, prestes a ser abençoado pelo Bispo. Ele dissera à sua congregação que aquele era o Santo Graal, e o achava tão belo que deveria mesmo ter sido. Pagara tanto por aquele cálice que só podia sê-lo. O Bispo era um homem com um senso estético altamente refinado.

Estendeu a mão para os dois coroinhas, baixando os olhos para o anel, enquanto isso. Era de ouro maciço, tão grande e pesado que só cabia em seu polegar. Seu modelo simples e sólido continha uma es­meralda perfeita, do tamanho de uma azeitona. Só aquele anel lhe cus­tara uma pequena fortuna, retirada, naturalmente, do dinheiro que ex­traíra dos fiéis em nome de Deus. Entretanto, as necessidades de Deus não eram tão mundanas nem tão dispendiosas quanto as dele.

Quando os coroinhas beijaram o anel e recuaram, um estalido surdo, semelhante ao eco de um tiro, penetrou na catedral. O Bispo olhou para uma janela de postigos abertos. As pernas pendentes de três corpos oscilaram silenciosamente de um patíbulo, bem ao lado do Castelo Aquila, na praça da cidade. A música do órgão evoluiu novamente em torno dele e o Bispo recomeçou a missa, despreocupadamente.

Nesse meio tempo, uma pequena multidão dos cidadãos menos devotos de Aquila se reunira na praça. De olhos esbugalhados, eles fita­vam os corpos flácidos e pendentes de três ladrões que, de maneira abrupta, haviam feito as pazes com Deus. Os quatro guardas encarrega­dos de trazer novos prisioneiros para a execução permaneciam descon­fiadamente entre eles, esperando ordens posteriores de seu capitão. Os uniformes vermelho e negro destacavam-se em sangrento contraste con­tra as roupas andrajosas e remendadas da multidão.

Marquet, o capitão da guarda, era um homem brutal, de barba escura e olhos tão duros como seu temperamento. Seu corpo grosseiro e fortemente musculoso dava a impressão de ter nascido para a brutalidade e a violência. Marquet chefiava os guardas há dois anos, desde quan­do o capitão anterior havia sido acusado de traição e banido pelo Bispo, por motivos que nenhum deles compreendia bem. Seu antigo capitão ti­nha sido um homem a quem respeitavam e admiravam, e tinham-no servido bem. Marquet não recebia nem uma coisa nem outra - mas era temido, de maneira que também esmeravam-se em cumprir suas ordens. Entretanto, â medida que suas vidas e as vidas de todos em Aquila fi­cavam mais difíceis sob o tacão de Marquet, os guardas resmungavam sombriamente que algum dia seu antigo capitão ia voltar e clamar por vingança. Marquet ouvia os murmúrios, e como temia a mesma coisa, seu temperamento ficava ainda mais agressivo.

Agora, Marquet erguia os olhos para os patíbulos, sorrindo de satisfação à vista dos corpos que oscilavam - três infelizes que haviam sido surpreendidos roubando cereais nos armazéns do Bispo. Em seu ca­pacete, as asas douradas de águia, símbolo de seu posto, cintilaram à luz do sol enquanto ele assentia.

Aquilo os empanturraria - murmurou.

O Bispo o promovera a capitão por confiar em que ele cumpriria suas ordens inflexivelmente... divertindo-se com o que fazia. Mar­quet se virou para seu tenente:

Jehan! Os próximos três!

Jehan fez continência e guiou seus homens pela praça pavimenta­da de pedra em direção aos calabouços do Castelo Aquila. Penetrando em uma passagem subterrânea, foram descendo cada vez mais em círculos pelos escorregadios e estreitos degraus cavados na rocha sólida - a única entrada, fortemente guardada, para uma prisão que tinham ficado conhecendo muito bem nos últimos meses. O ar ficava mais úmido e fétido enquanto desciam, e eles começaram a ouvir os gemidos dos pri­sioneiros mais abaixo.

Os calabouços situavam-se em um vasto buraco, cavado nos alicer­ces rochosos do castelo, tão profundos e inexpugnáveis como os poços do inferno. Uma grade de madeira e ferro dividia a câmara em uma colméia de incontáveis celas e j aulas, todas tendo uma nítida visão dos instrumentos de tortura dos calabouços. Jehan gritou quando os guar­das chegaram ao fundo. O carcereiro-chefe aproximou-se em passos pe­sados, com uma tocha na mão, um molho* de chaves de ferro choca­lhando em seu cinto.

Por que não construíram uma forca maior? - resmungou ele. — Assim não me amolariam tanto aqui embaixo.

Pelo menos, você está aqui apenas de visita — disse um dos guardas.

Ele prendeu o nariz. Jehan bufou. O carcereiro conduziu-os ao longo de corredores elevados, passando cela após cela. Os gemidos e gritos extinguiam-se quando eles passavam; rostos fantasmagóricos re­cuavam das grades cobertas de bolor escorregadio. Os prisioneiros ocul­tavam-se na escuridão, acreditando ainda que havia algo pior do que a existência de mortos-vivos que agora levavam.

Jehan parou diante de uma cela no mais profundo recesso do po­ço e perscrutou através da grade, em súbita e ansiosa procura pela pró­xima vítima do patíbulo. Ele recordava aquele particular prisioneiro, ti­nha-o encerrado ali pessoalmente. O jovem ladrão prestes a ser enforca­do ludibriara os homens da guarda durante meses, sempre conseguindo escapulir, até que finalmente tinham-no capturado. Jehan ansiava ver aquele rato manhoso balançando na forca.

Jehan olhou através do rendilhado das grades. Piscou durante um longo momento para ajustar a visão à penumbra do outro lado. Conteve a respiração; o fedor de dejetos humanos e doença era insuportável. Quando seus olhos se adaptaram, distinguiu dois vultos esfarrapados que se encostavam à parede mais distante. Um deles olhava fixamente para diante, como se sua mente houvesse escapado daquele buraco in­fernal, deixando o corpo para trás. O outro prisioneiro cantarolava por entre os dentes uma canção desafinada, murmurando as palavras de mo­do ininteligível. Mesmo na escuridão, Jehan sabia que nenhum daqueles dois rostos sujos e cadavéricos era o que procurava. Apertou-se contra as grades, pesquisando cada canto da cela. Não havia mais ninguém ali dentro.

Phillipe Gaston? - chamou, perplexo. Virou-se para o carce­reiro. Cela errada. Eu quero Phillipe Gaston, aquele a quem chamam de Rato.

O prisioneiro que cantalorava começou a cantar audivelmente:

O rato, o rato... foi embora de nossa casa...

O carcereiro ergueu a tocha e examinou os arranhões quase ile­gíveis na porta da cela.

Cento e trinta e dois, senhor. É esta mesmo.

Ele fugiu - cantou o prisioneiro. - Não há nenhum rato ho­je. .. - Depois emitiu um riso contido, fazendo um gesto abarcando a cela, com a mão ossuda.

Jehan tornou a apertar-se contra as grades, examinando melhor os cantos penumbrosos da cela. Desta vez enxergou a grelha aberta do esgoto. Ofegou de boca aberta, sem acreditar no que via. O buraco não teria mais de trinta centímetros quadrados - certamente nenhum ser humano adulto, nem mesmo o escanifrado, miserável e pequeno Gaston poderia ter escapado por ali. Enquanto espiava, um ratinho saiu do buraco e correu através do piso nauseabundo da cela.

... parou o sofrimento, ele se foi pelo encanamento...

Cale a boca, seu imbecil! - gritou Jehan. Tornou a olhar para o carcereiro. Abra a porta!

O carcereiro remexeu em suas chaves e abriu a porta com frené­tica pressa. Jehan e os guardas entraram na cela.

O que houve com ele? — exigiu Jehan, com entonação brutal. O cantor olhou para ele, com descuidada calma.

- Eu já lhe disse, caro senhor. — Fez um gesto para o buraco do esgoto. - Eu também tentei escapar, mas não coube. . . - Sorriu le­vantando as mãos. - Portanto, como ele continua vivo, o senhor pode me matar duas vezes.

Jehan deu meia-volta, nada mais vendo senão o rosto de Phillipe Gaston, que não estava ali. Empurrou os -guardas furiosamente para a porta.

- Revistem cada esgoto! Cada encanamento! Encontrem o ho­mem ou o Capitão Marquet enforcará vocês no lugar dele! E talvez a mim também, maldito seja ele! Jehan ouviu os passos atemorizados dos guardas, afastando-se por onde tinham vindo. Deu uma última espiada ao buraco do esgoto.

- Inacreditável! - murmurou.

Depois, com uma praga de frustração, abandonou a cela.

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPÍTULO 2

 

Muito abaixo do Castelo Aquila, o buraco do esgoto se abria para outro mundo - um mundo ainda mais proibido do que os calabouços do castelo. As cloacas de Aquila haviam começado com a cidade, nos tempos romanos, quando engenheiros especializados do Império ti­nham-se aproveitado de um sistema natural de cavernas que existia abaixo das primitivas instalações para dejetos. Em certa época, a rede de esgotos fizera parte de um plano ordenados estruturado, como a pró­pria cidade. Entretanto, desde a queda do Império, fora deixada ao abandono e deterioração através dos séculos, enquanto a cidade esten­dia-se planície acima, inteiramente ao acaso, de maneira descontro­lada. Agora, os esgotos compunham um labirinto insondável, perfuran­do o subsolo como túneis de cupim, abaixo de cada prédio e cada rua - um outro mundo, no qual nenhum cidadão lúcido de Aquila tinha qualquer vontade de entrar.

Aquele mundo secreto e subterrâneo jazia esperando em eterno silêncio, perturbado apenas pelo guincho ocasional de ratos, o pinga-douro da efluência e o correr de água distante. Agora, no entanto, aque­la paz escura era quebrada por sons novos e inesperados. Os ruídos de grunhidos, arquejos e arranhões eram débeis a princípio, mas começa­ram a intensificar-se até ecoarem do buraco do esgoto para o túnel va­zio abaixo. De repente, um braço saiu do buraco para o ar livre. Ace­nou selvagemente para baixo e para cima, perplexo e em triunfo. Depois do braço foi a vez de parte de um ombro. Em seguida sur­giu o resto do corpo ágil e de ossatura miúda de Phillipe Gaston. Emer­giu pouco a pouco, como um recém-nascido. Contorcendo-se e sacudindo-se como um acrobata, o jovem ladrão conseguiu finalmente liber­tar-se do cano do esgoto e caiu no solo.

Ele ficou sentado, ofegando para respirar, mal sentindo o fedor ao encher os pulmões completamente, pela primeira vez em muito tem­po. Olhou para o buraco com ar de incredulidade e um pequeno sorri­so enviesado repuxou-lhe a boca.

- Em verdade, não foi muito diferente de escapar do útero da mãe — murmurou. — Céus, que recordação...

Desviou os olhos, estremecendo. Sua pele estava esfolada e os farrapos de sua roupa estavam cobertos de imundície. Tinha as unhas quebradas e sangrentas, após rastejar pelo esgoto abaixo. Levara ho­ras forçando o corpo através do encanamento, horas que pareciam anos. O buraco do esgoto não caía diretamente na fossa, mas se dobra­va contra si mesmo como uma serpente. Vezes sem conta ele se imagi­nava irremediavelmente encurralado no mesmo cotovelo ou volta de seus intestinos. Contudo, não tivera escolha senão continuar esforçan­do-se e, no fim, conseguira libertar-se do emaranhado. Escapara dos calabouços, e os bons cidadãos de Aquila jamais lhe poriam os olhos em cima. . . se pelo menos pudesse encontrar a saída de sua rede de esgo­tos.

Ele se agachou onde estava, olhando devagar em torno. A imensi­dão daquele mundo subterrâneo o espantava. Estivera muitas vezes em cidades do tamanho de Aquila, porém jamais penetrara nos esgotos de uma Na maioria das cidades visitadas, os esgotos corriam simplesmente pelo meio da rua. Por fim, a escuridão deixou de ser tão completa - uma claridade mortiça infiltrava-se pelas incontáveis aberturas pluviais do mundo acima. Acostumados à penumbra dos calabouços, seus olhos não tinham dificuldades em ver.

A primeira coisa que viu foi um esqueleto humano, submerso na lama negra, a um metro de distância. Ele saltou para trás, com um grito assustado. O crânio amarelado sorria em oca hilaridade. Ele res­pondeu com um sorriso arrependido e estudou especulativamente o esqueleto.

- Um e oitenta e cinco, hem? - Sua voz ecoou fracamente no túnel. Ele se ergueu, espichando o corpo miúdo até ganhar a altura to­tal. - Um tamanho ideal para passar pelos portões do céu, meu amigo. No entanto, veja só onde o Senhor, em Sua infinita sabedoria, preferiu deixar nós dois. - Fez um gesto em torno, olhou de repente para o teto gotejante. - Não estou me queixando, compreenda - disse, para o céu. — Apenas... apontando as coisas.

Deu de ombros. Tinha o que gostava de imaginar como um relaci...

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